INTRODUÇÃO
Este é um relato de época organizado por Mírian de Assis que tem como finalidade mostrar às futuras gerações como eram os costumes e problemas das que viveram no século XX . O relato inicial é de Irene Reipert Cardoso, nascida em 27 de abril de 1905 e falecida em 31 de Maio de 1998. E o que se segue é de sua filha Marília Cardoso de Paula Assis, nascida em 12 de maio de 1938, ainda viva no século XXI e, como geógrafa, historiadora e socióloga, gostaria de compartilhar um pouco das suas experiências. O patriarca da família, imigrante alemão, teve uma importante trajetória no mundo dos negócios e também na política vicentina e regional:
Hermann Aloys Reipert foi um destacado vereador em duas legislaturas na Câmara Municipal de São Vicente, no biênio 1899-1900, tendo como pares o Capitão Gregório Inocêncio de Freitas, Hermann Hayn, Joaquim Dias da Silva, Antônio de Lima Machado e Fellipe Caheus.
Era alemão, nascido em Nassau em 9 de novembro de1866, naturalizado brasileiro. Veio para o Brasil para trabalhar como corretor de café na Bolsa de Santos, tendo alcançado nessa função e praça amplo prestígio nos negócios.
Residia em São Vicente numa ampla propriedade denominada Chácara Boa Vista, cuja vivenda principal ficava de frente à ilha Porchat, entre o Itararé e a Praia de São Vicente (atual Milionários). Anos mais tarde essa propriedade seria loteada, dando origem ao bairro Boa Vista , também conhecido como Vila Bethânia ou Vila dos Estrangeiros.
Reipert foi o autor do projeto legislativo que transformou a antiga Vila de São Vicente -na época sob tutela política de Santos – elevando-a ao status de Cidade. Essa manobra política foi feita em acordo como então intendente Antão Alves de Moura, imigrante português, também corretor de café e capitalista.
Antão Moura tornou-se prefeito e empreendeu um grande acordo tributário com os proprietários de imóveis num edital denominado “Á Bocca do Coffre”, no qual concedia descontos e quitação de antigos débitos com o erário público municipal.
Essa medida, juntamente com a mudança de status politico urbano proposto por Reipert, provocou o renascimento de São Vicente e sua transformação num importante balneário veranista nas primeiras décadas do século XX.
Hermann Reipert faleceu em São Vicente, em 1932, aos 64 anos.
"Á Bocca do Coffre. São Vicente em 1909. Negócios, Famílias e Propriedades". - CALUNGA-Coletivo de Historiadores. Enciclopédia da História da Capitania de São Vicente.
PARTE 1
IRENE REIPERT CARDOSO
Uma breve história de vida de Irene. Quando Irene Reipert nasceu em 27 de abril de 1903, em Santos, São Paulo, Brasil, seu pai, Hermann Alloys Reipert, tinha 28 anos e sua mãe, Aurinívea Leocadia de Lima Ribeiro, tinha 19 anos. Ela casou-se com Joaquim da Costa Cardoso em 19 de fevereiro de 1930, em Bela Vista, São Paulo, São Paulo, Brasil. Ela faleceu em 31 de maio de 1998, em São Paulo, Brasil, com 95 anos.
Fonte: Family Search
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Memórias desta pequena burguesa nascida no início do século XX, minha avó Irene Reipert Cardoso e sua filha, minha mãe, Marilia Cardoso de Paula Assis.
Este é um relato de uma época, tem como finalidade esclarecer às futuras gerações como eram os costumes e problemas das gerações que viveram no Século XX e XXI.
O relato inicial é de Irene Reipert Cardoso, nascida em 27 de Abril de 1903 e falecida em 31 de Maio de 1998 e o que se segue é de sua filha Marília Cardoso de Paula Assis, nascida em 12 de Maio de 1938, recém falecida em 22 de janeiro de 2024 no século XXI, e como Geógrafa, Historiadora e Socióloga, gostaria de passar adiante um pouco das experiências vividas.
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Esta vida é muito interessante! Quando alguém desabafa suas mágoas num momento de depressão, a resposta é quase sempre a mesma "A Vida é assim mesmo, não há quem não sofra". Ninguém considera que existem várias espécies de sofrimentos: uns, sofrem com menos intensidade, com problemas como a perda de dinheiro e do emprego que pode ser recuperado ou adquirido noutro lugar; desentendimentos entre pessoas da família, que podem ser resolvidos com um pouco de boa vontade e compreensão e menos egoísmo; de amor aos filhos, que não tem culpa de terem nascido, ambição e vaidade sem limites, contribuem para agravarem situações já de si difíceis. Outros não? Sofrem a vida toda, de todas as formas possíveis e imagináveis. Coisas que parecem incríveis, mesmo absurdas, mas que acontecem sem que a pessoa contribua para isso. Culpa dos pais? Às vezes, ou do destino, conforme pensam muitos, com suas ideias fatalistas que contrariam as nossas ideias religiosas (em meu caso).
Penso que o domínio mouro que durou cerca de oito séculos na Península Ibérica, tenha contribuído muito para a difusão dessas ideias. Mas, se já nascemos com o nosso destino marcado, para que rezar? Para que pedir auxílio a Deus? Deus seria assim tão cruel que nos marcaria com um estigma tal que por mais que lutássemos, quer pelo trabalho ou pelo estudo, tendo coragem para vencer galhardamente todos os empecilhos que enfrentamos, implorando a sua misericórdia e procurando cumprir os seus preceitos de justiça, caridade e amor ao próximo. Talvez falhemos algumas vezes, pois não passamos de humildes mortais, pecadores, muita coisa pode passar desapercebida ao nosso entendimento humano. Não sei!
Li uma vez, que a nossa religião católica é contrária as ideias fatalistas. Se o próprio Jesus disse aos que a ele recorreram e a quem Ele orou: "A TUA FË TE SALVOU", se Ele próprio admitiu isso, foi porque não condenou ninguém a um determinado destino. Os homens é que falham, são orgulhosos e ambiciosos e se esquecem de cumprir as leis de Deus. Mas, por que então alguns procuram realizar seus deveres e sofrem tanto? Qual será a causa disso? Quando sofrem humilhações, necessidades, até falta de alimentos, com resignação, sempre esperando dias melhores, nunca perdendo a fé em Deus mesmo nos piores momentos em que sentem desamparados pelos falsos amigos, chegando a fraquejar momentaneamente, chorando de desespero pela falta de compreensão, pelas humilhações cruéis de pessoas mais favorecidas, que ignoram as causas de suas atitudes quase com desprezo. Tudo isso é muito duro e a pessoa que é vítima disso e que foi sempre amiga daqueles que as fazem sofrer quando poderiam ajudá-los moralmente e elevar sua coragem na vida, não o fazem mais que humilhá-los, sem compreender que uma pessoa que teve posição social elevada e dispunha de dinheiro, tem uma sensibilidade maior, o que é natural, decorrente da brusca mudança de situação econômica.
Esta exposição toda descrita por mim, Irene Reipert Cardoso, tem por objetivo explicar tudo o que já nos aconteceu durante a nossa longa vida cheia de lutas e desgosto, mas de cabeça erguida, com dignidade.
Nasci no começo do século XX, em 27 de abril de 1903 em Santos, Estado de São Paulo. Sou filha de um casal desquitado: Hermann Aloys Reipert e Aurinívea Leocádia de Lima Ribeiro Reipert. Ele alemão, nascido em Nassau em Nove de Novembro de 1866, naturalizado brasileiro e ela brasileira nascida em Limeira, Estado de São Paulo em Oito de Agosto de 1883.
Esta união aconteceu em 30 de novembro de 1901 conforme Certidão de Casamento firmada no Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais de Santos, 1° subdistrito, comarca de Santos - Estado de São Paulo (fls 106 do livro 16).
Meu pai era filho de Jean Aloys Reipert e de Guilhermina Francisca Luisa Reipert, e minha mãe era filha de Dr. João Chaves Ribeiro, baiano, que foi Delegado de Saúde em Taubaté, SP e de Leocádia Bernardes de Lima Ribeiro, de Espírito Santo.
Quando minha mãe se separou de meu pai, pela Primeira vez, deveria ter mais ou menos dois anos de idade. Eles fizeram as pazes posteriormente, eu tinha menos de seis anos. O desquite não foi celebrado naquela época e sim alguns anos depois, quando eu já estava com mais ou menos onze ou doze anos e já tinha nascido minha irmã menor com quatro ou cinco anos de idade. No meio do caminho, entre eu e minha irmã, nós perdemos um irmão, Aloísio, que morreu com meses de vida. Na época, meus pais ocupavam uma bela posição social em Santos e frequentavam a melhor sociedade santista.
Meu avô Dr Chaves Ribeiro ficou viúvo com cinco filhos ainda meninos. O menor deveria ter dois anos e ele se viu na necessidade de colocar as duas meninas, pois minha mãe tinha uma irmã, Adjelzira, em colégio interno. Outro irmão ficou em Jacareí internado em colégio famoso naquela época, que pertencia a um tio, cunhado de meu avô: Dr Lamartine Delamare Nogueira da Gama, tido como grande educador.
O irmão mais velho, com uns quatorze anos entusiasmado talvez pelas histórias contadas pelo meu avô sobre a Guerra do Paraguai, onde tomara parte como capitão médico da armada, fugiu de casa e se meteu na Revolta de Floriano. Durante a ausência de meu avô, que estava negociando a venda de uma fazenda da sogra, minha bisavó materna, para a família Nothman, venda essa impossibilitada pela morte do comprador que foi assassinado, a minha avó na ausência do marido e preocupada com o filho menino ainda, e com as notícias alarmantes sobre a Revolta de Floriano, que dizimava em massa o pelotão do qual o filho fazia parte, começou a procurar pelos quartéis notícias do filho que felizmente havia sido afastado do batalhão devido a sua pouca idade.
Nessas andanças pelo Rio de Janeiro, ela contraiu febre amarela que graçava no Rio de Janeiro naquela época. Meu avô que já tinha muita prática como sanitarista na cura dessa epidemia e outras que apareceram na ocasião, a encontrara já nas últimas e nada pode fazer para salvá-la.
Minha mãe Aurinívea falava francês, tinha bom conhecimento de português, pois foi aluna do professor Basílio de Magalhães de quem era cunhada, e meu avô era muito exigente em relação a nossa língua. Era formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, famosa na época e cujo tio era Deão. Era amigo do Sr. Cajado de que foi colega desde menino, do Sr. Costa Pires, Dr. Gonçalves Teodoro e outros. Foi também amigo do Dr. Domingos Jaguaribe, Dr. Emílio Ribas, de Campos Sales, do Dr. Batista de Campos Pereira etc.
Meu pai Hermann, como já disse acima, era alemão, veio rapazinho de lá com os pais e irmã. Uma senhora que conheceu a minha avó paterna contou-me que ela tocava piano admiravelmente, mas, infelizmente não a conheci, porque morreu ainda moça em poucos dias vítima de uma doença súbita de garganta, crupe, me parece. Meu avô, seu marido, desgostoso voltou para a Alemanha aonde veio a falecer anos depois. A minha tia voltou para lá também e dedicou-se ao ensino de piano em Berlim, onde eu a conheci quando estivemos a passeio, pouco antes da Guerra de 1914.
No Brasil, meu pai tornou-se amigo de um jornalista, Martins Bonilha, muito inteligente, de grande cultura, com quem aprendeu português, em troca do alemão que ele lhe transmitiu, conseguindo dessa forma escrever correntemente a nossa língua. Mais tarde, naturalizou-se brasileiro e matriculou-se como corretor oficial de café na Praça de Santos. Em São Vicente, foi Vereador da Câmara Municipal e em Santos ocupou outros cargos e foi subdelegado de polícia. Ele foi de grande importância para que a minha cidade, até então vila, de São Vicente, se tornasse o que é hoje: cidade.
Meu pai casou-se duas vezes: a primeira, com uma senhora que tinha três filhos pequenos, dois meninos e uma menina, que veio a casar-se com um filho do Comendador Alfaya Rodrigues, que era Porchat (proprietário da ilha existente em São Vicente) do lado materno, foi Prefeito de Santos. Esse casamento, para não prejudicar os filhos foi realizado com separação de bens, ficando cada um dos cônjuges com a parte que lhes cabia. Meu pai e a primeira mulher tiveram dois filhos, Otília e Hermann. A menina morreu pequena e o menino, meu meio irmão veio a falecer há uns 3 anos (lembrando que escrevi este relato em 1971), deixou 5 filhos e 7 netos. Meu pai ficou viúvo ainda muito novo.
Ele juntamente com a mulher e o filho já crescido mudaram para a casa em terreno por ele adquirido com 2.400 m2 e depois ampliada com a compra da parte de traz, mais ou menos 6.300 m2, onde mandou construir na Praia Itararé em frente a Ilha Porchat. Depois da morte de sua primeira mulher, meu pai e seu filho se mudaram para outra casa de sua propriedade na Avenida Ana Costa em Santos, na esquina da Praça Belmiro Ribeiro, em Vila Mathias, aonde veio a conhecer a minha mãe que morava na casa ao lado.
Como minha mãe era muito nova e bonita, ele apaixonou-se por ela e pensou logo em casar-se, o que chocou um pouco os enteados, pois ainda não fazia um ano que enviuvara. Hoje com a idade que tenho, compreendo tudo isso. Um homem já não muito novo quando se apaixona por uma jovem, bem mais nova, tem medo de perdê-la e por isso procura casar-se logo, o que é humano, embora pareça inconveniente.
Minha mãe em Santos tomou parte em recepções do Clube XV, onde eram sócios foi muito aplaudida pela crítica com os números de música por ela interpretados. Tinha estudado canto pela Escola Italiana (meio soprano). Eles eram sócios também do Clube Inglês, porque naquela época, antes da primeira guerra, ainda não havia animosidade como aconteceu depois. Infelizmente eu ainda era pequena e pouco pude aproveitar de tudo isso.
O Hermann, meu irmão do primeiro casamento estudou no Ginásio Santista cujo curso na época era de seis anos, depois veio para São Paulo e mais tarde para a Alemanha onde permaneceu uns cinco anos, voltando com bom preparo e como tradutor juramentado. No seu retorno ao Brasil casou-se com uma moça de ótima família brasileira, Maria José do Amaral, extremamente boa, pois nunca tivemos a menor queixa, nem eu nem minha irmã que éramos pequenas. Maria José ajudou a criação da Maternidade de São Vicente. Ela, alguns anos depois adquiriu uma doença súbita e ficou cega, o que sentimos muito. Eles tiveram cinco filhos.
Morávamos na casa da praia, situada na Chácara Boa Vista, que meu pai havia construído no tempo da primeira mulher e que alugara para pensão após a viuvez. Era grande de estilo suíço, penso, e tinha 9 quartos,3 salas e um grande terraço com perto de 12 metros de cumprimento. O jardim tinha 60 metros de frente para Itararé, 110 metros para a praia de São Vicente, 90 metros de fundo e 70 metros do outro lado; dava para três esquinas, cerca de 9.000 metros quadrados. Tínhamos um trole tipo inglês para 6 pessoas, cavalo de montaria e lancha a gasolina. A casa era bem recuada, tinha altas grades de ferro na entrada e um canteiro redondo no centro, de modo a possibilitar entrada de carro pelo portão principal, contornar o canteiro e voltar pelo mesmo portão. Não era uma casa, era uma Mansão como dizia Dona Adelaide Cajado, uma grande amiga de nossa família. Nela passei os melhores dias da despreocupada infância e meninice dos quais tenho saudades.
A Chácara Boa Vista e a casa dos Reipert em primeiro plano no terreno que seria loteado alguns anos mais tarde.
Naquele tempo era comum as pessoas visitarem navios ancorados no Porto de Santos, mamãe gostava de comprar perfumes franceses, meu pai da cerveja e eu do chocolate. Um dos dias mais felizes da minha vida foi quando um automóvel nos foi buscar em casa para levar-nos ao cais quando embarcamos para a Europa, pois eu sempre tive queda para viagens, coisa que infelizmente pouco pude fazer depois de tudo que nos aconteceu como relatarei adiante. Fomos de primeira classe num grande navio que naquela época era um dos maiores e mais luxuosos "Capitão Vilano" e voltamos, cerca de seis meses depois em outro maior " Kenigs Frederich August". Meu pai, minha mãe, minha irmã pequena Antonietta, eu e a pajem Maria, descendente de alemães, de Santa Catarina. Ambos os navios eram de luxo e a primeira classe era obrigado traje a rigor. Nós, naturalmente, tomávamos as refeições na sala das crianças, toda branca, até o piano, juntamente com a pajem que nos acompanhava. Na ida viajamos com pessoas da família Paes de Barros, Dona Tude, casada com o senhor Oscar Faria, suas irmãs Rafaela e Ana Rosa; senhor Horácio Sabino, Horácio Espindola etc., muitos argentinos, pois gostavam muito de viajar.
Passeamos bastante pela Alemanha, descemos de Hamburgo onde tomamos um barco para o cais e dali seguimos para outros lugares. Como, eu era ainda criança não me lembro da ordem em que fizemos nossos passeios. Só sei que estivemos em Berlim, uma linda capital, e percorremos boa parte do Reno: Colônia, Dusseldorf, Bad Ems, Braunfelds, Nassau, terra de meu pai, Koblenz etc. Estivemos também em Paris, capital da França, passamos por Londres capital da Inglaterra, Bélgica, Portugal, Espanha. De algumas coisas eu me lembro e de outras eu me recordo porque minha mãe conversava de vez em quando comigo, costume muito natural naquela época em que não havia tantas distrações como hoje e as pessoas possuíam este bom hábito.
Meus pais tinham de vez em quando suas discussões, mas ambos nos queriam muito, eram bons para nós; sentíamo-nos em segurança, até o dia em que se desentenderam mesmo e minha mãe resolveu se desquitar. Esclareço, porém que a razão era séria. Foi aí que começaram as nossas desditas.
Mamãe ficou conosco, morando primeiro com umas tias avós já idosas, em São Paulo, ambiente triste, pouco propício para crianças. Em virtude do desquite, ela ficou com duas casas relativamente boas em São Vicente, na rua Ipiranga e com uma mesada de 100,00 (interessante verificar a moeda desta época), que meu pai era obrigado a fornecer para nossos estudos.
Nas férias ficou estabelecido que iríamos passar com meu pai, na casa da praia. Ali, tínhamos uma governanta, uma criada e um jardineiro permanentes que nos cuidava quando meu pai ia para a cidade a serviço, pois tinha naquela época escritório de café com quatro empregados: Victor e o irmão Braitaupt, Rudolf Nicolash e Hermann Quintas, foi proprietário da loja H. Quintas, no Guarujá.
Ele procurava nos agradar como podia, nos levava ao cinema, teatros, confeitarias, restaurantes, piqueniques etc. Ficava feliz quando nos tinha em sua companhia. Minha irmã era um pouco pequena para entender as coisas direito, por isso eu não sei o que ela poderia pensar a respeito, mas eu me sentia muito triste, às vezes, porque era bem desagradável estar só com um dos pais em vez de viver com os dois como as outras crianças, como seria normal para aquela época.
Naquela época não era muito comum casal desquitado, de modo que havia muita curiosidade, principalmente por parte das pessoas pouco educadas ou de natureza pouco caridosa. Havia sempre perguntas indiscretas como, por exemplo: "Por que você está só com sua mãe?"; “Onde está o seu pai?" “Por que ele está em Santos?" “Por que está só com seu pai? “E sua mãe?", assim por diante.
Enfim, as coisas iam correndo mais ou menos apesar das dificuldades por que passávamos. Mamãe e nós duas vivíamos dos alugueres das duas casas e dos 100,00 que meu pai nos dava, mas acontecia que nem todos os inquilinos eram muitos honestos, nem sempre pagavam em dia, o que ocasionava dificuldade no pagamento de nossa manutenção. Ora vinha intimação para pagamento dos impostos, conserto de encanamentos que os inquilinos estragavam. Muitas vezes meu pai pagava estas despesas extras para ajudar mamãe, porque no fundo, ele tinha esperança de que ela voltasse a fazer as pazes. Isso talvez acontecesse com o tempo, mas infelizmente com a entrada do Brasil na primeira grande guerra, embora meu pai não se envolvesse, pois ele era naturalizado brasileiro e louco pelo nosso país, foi colocado na lista negra e como tal impossibilitado de negociar café e nós que somos brasileiras de nascimento e do lado de minha mãe, sofremos as consequências. Depois, ele foi acometido de um derrame, catarata etc. Pouco enxergando foi vítima de seus empregados, infiéis, que fizeram com que ele assinasse documentos quando pensava assinar outros. Mais tarde, ficou provados tudo isso, com documentos encontrados no Cartório Afonseca, pois ganhamos a questão movida por minha mãe, mas tudo isso só depois de 23 anos de luta (de 1919 à 1942), recebendo cada um cem conto de reis.
Quando foi definido o desquite, minha mãe resolveu mudar-se para uma pensão de senhoras dirigida por uma viúva muito distinta e sem filhos, Dona Mariquinhas, que hospedava moças do interior, parentes e amigos que estudavam em São Paulo na Escola Normal, estudantes de odontologia, de farmácia, de conservatório musical etc. Havia também uns dois casais e um sobrinho estudante de engenharia, Raul Simões, que se casou mais tarde com Olga Jaguaribe Hecman, neta do Dr. Jaguaribe, amigo do meu avô. Devido a contratempos já mencionados por mim, antes passávamos algumas dificuldades financeiras, apesar da vida modesta que levávamos. Raramente eu dispunha de duzentos reis para o bonde, e quando isto acontecia comprava balas. Levei cerca de dois anos e meio indo e voltando a pé, com chuva ou sol, frio ou calor, da Rua Brigadeiro Tobias, esquina da Rua Washington Luiz até o Externato São José, na Rua da Glória. Esquina da Rua dos Estudantes, o que era uma boa pernada. Para variar eu não insistia sempre no mesmo trajeto, às vezes ia Rua Brigadeiro Tobias, Largo Paissandu, Viaduto do Chá ou Santa Efigênia etc. Outras vezes pela Rua Florêncio de Abreu, Rua São Bento, assim por diante. Muitas vezes passava frio, porque estava crescendo e as minhas roupas já não tinham o que encompridar ou alargar. Usava uma blusa leve de lanzinha quase que o inverno todo. Creio que não sofria mais frio porque fui habituada a banho frio diário desde pequena. Muitas vezes, quando íamos para Santos, meu pai notava que não tínhamos agasalhos suficientes e como naquele tempo Santos era muito quente, havia pouca roupa de inverno para comprar, ele me fornecia mais dinheiro para adquirir em São Paulo, mas devido à falta de meios que sempre nos perseguia, apesar da vida modesta que levávamos, eu entregava tudo a mamãe para pagar as despesas da pensão. A situação ficou de tal forma que nós nos vimos na necessidade de vender nosso piano alemão, quase novo, da marca "Runich", um dos melhores vindo de encomenda por meu pai. A situação não era nada boa. Mamãe tinha joia herdada da mãe, como bracelete de brilhantes, brincos e anéis de pérola e brilhantes, pulseira relógio com diamantes, foi tudo para pagar dentista e outras despesas urgentes noutra pensão, ao lado da Catedral da Sé, de Dona Chiquinha, em que estivemos por pouco tempo. Mamãe deixou uma máquina Singer nova de armário como fiança para lhe ser devolvida quando fosse saldar a conta da pensão e de boa fé, sem pensar mal. Ela pagou a conta e pediu devolução da máquina que ali ficara. Sabem o que disse o filho da dona da pensão? Que não tínhamos deixado nenhuma máquina ali. Mamãe insistiu inutilmente e como não dispusesse de testemunhas ficou sem ela o que nos deu bastante prejuízo, não só pelo valor da máquina como pela utilidade que nos poderia proporcionar. Com ela mamãe poderia costurar a nossa roupa e fazer alguma para fora o mesmo acontecendo comigo, já que era grandinha e tinha jeito para coser. Quanto ao piano que já fora vendido, com grande dor da nossa parte, com os conhecimentos que minha mãe tinha de música poderia dar aulas particulares e se defender como pudesse. Com o resultado de tudo isso fomos obrigadas a alugar um quarto e receber refeições gratuitas em casa de uma das tias, que era madrinha de minha mãe, que procurou nos ajudar. Nessa ocasião, em agosto de 1919, meu pai teve um prejuízo tremendo e prazo de dois anos de concordata com o final sabido por toda Santos da época. Ficamos sem nada, apesar da avaliação dos bens serem bem maior que o débito apontado. Ficamos apenas com as casas que mamãe ainda tinha da Rua Ipiranga em São Vicente, e que se viu na necessidade de vender devido ao precário estado de conservação, as despesas que eram obrigadas a pagar com custas e embargos, apelações etc., para prosseguir com a questão que ela moveu contra os que nos prejudicaram, como ficou provado, com auxílio e apoio de tio Martim Francisco Ribeiro de Andrada FOTO, conhecido como o terceiro, por ser bisneto de José Bonifácio, o Patriarca, neto de Martim Francisco, o 1°, que era genro do irmão, de quem era uns 12 anos mais moço. O pai de tio Martim era o conselheiro Martim Francisco, conhecido como o 2o A Dona Benvinda, mãe de tio Martim a quem conheci já velhinha, era descendente de Amador Bueno, o que não quis ser rei e que se refugiou em uma igreja, cuja reprodução se acha na Pinacoteca do Estado, na Praça da Luz n.o2.Ele era casado com uma prima carnal de minha avó Leocádia, do lado materno, também descendente do Barão de Itapemirim. Tia Zé (Ursula era seu nome) e minha avó Leocádia eram filhas de duas irmãs casadas com dois irmãos que por sua vez eram parentes entre si. Tio Martim estava na ocasião como Presidente da Província do Espírito Santo e o pai de tia Zé, era deputado geral no tempo do Império. O engraçado é que tio Martim ia jogar gamão com o pai da futura esposa para ter acesso em sua casa e depois do noivado, que durou pouco, deixou o sogro na mão para se dedicar à noiva a quem muito queria e com quem foi muito feliz. A única coisa que sentimos foi eles não terem filhos o que contribuiria para a aproximação do nosso parentesco com um Andrada, que era por afinidade. Se houvesse descendência, seria direto pela ligação próxima entre minha avó Leocádia e tia Zé (Úrsula).
Nada impediu que fossemos muito amigos, pois, tio Martim era uma criatura boníssima e nos procurava quando podia e quando os acessos de asma não impediam de fazê-lo. Com a morte de tia Mariquinhas, em cuja casa tomávamos as refeições, passamos a almoçar e jantar na casa de outra irmã de meu avô, tia Emília, que era minha madrinha e procurava nos ajudar também. Nessa altura dos acontecimentos, a minha irmãzinha Antonietta, que estava magrinha, foi convidada pelo Dr. Ernesto Gerdes, viúvo duas vezes de senhoras da família Toledo Piza, e sua filha adotiva, Catha, para passar uma temporada no interior de São Paulo, em Matão, onde permaneceu, não um mês, mas três anos por impossibilidade de buscá-la por falta de recursos. Minha mãe e eu tínhamos saudades e vontade de trazê-la, mas a viagem era longa e cara (com baldeação em Itirapina), além disso, a nossa renda na época, era apenas 120.000, importância escassa para duas e insignificante para três e não queríamos que ela passasse necessidades, pois já estava grandinha. Para passar miséria, não convinha, duas já estavam sendo penalizadas. Mamãe comprava salsicha e batata, mais fáceis de cozinhar na espiriteira no quarto. Isso, no almoço, de tarde tomávamos chá com pão sem manteiga.
Uma ocasião conseguimos algum dinheiro e fomos para Matão para rever minha irmã, a convite da família que estava com ela. Mamãe achou melhor dispensar o quarto mobiliado que ocupávamos por medida de economia, contando, na volta, alugar outro. Aconteceu, porém, que após dois meses de ausência, precisamos tomar pouso por uns dias em casa de uma senhora, solteira, tia de uma prima Dona Bembem, que tinha criado um sobrinho, Valentim, já moço naquela época. Ela demonstrava grande afeição por minha irmã, a que achava semelhança com uma sobrinha que morrera pequena, atropelada por um bonde. Eles não dispunham de grandes recursos e nós ficamos com vergonha de abusar da hospitalidade. Aconteceu na ocasião, que mamãe encontrou na rua com uma prima por afinidade, M.L. que era casada com um de seus primos, filho de tia Mariquinhas, irmão de meu avô Dr. João Chaves Ribeiro, que nos convidou para ficarmos uns dias em sua casa até acharmos quarto. Ela dispunha do quarto do sogro, que era não só tio por afinidade de minha mãe, como primo irmão da mulher e, portanto, de meu avô. Ela nos disse que não nos recebia no quarto dele porque embora ele não estivesse (ele passava um pouco em casa de cada filho que eram ricos) o marido não queria que o quarto fosse ocupado por estranhos. Á noite, estendíamos um colchão no chão da sala de visitas e ali dormíamos. Mamãe, aflita, com receio de incomodar, saia todos os dias para procurar quarto para mudarmos, ia só para economizar, mas por mais que fizesse só achávamos quarto mobiliado cujo aluguel era superior as nossas posses. Esse foi um período bem penoso para nós.
Quando chegamos de Matão, deixando minha irmã lá, soubemos que a referida prima por afinidade, havia recebido uma carta anônima criticando a visita aos domingos de três primos, meninotes de 16 e 18 anos, que passavam as tardes em sua casa atraídas pela boa recepção que como boa de casa ela fazia. Ela além de ser bem mais velha do que ela era casada, feliz tinha quatro filhos grandes, três meninas e um menino e o marido sempre compareciam as suas reuniões. Nada havia de mal nisso e quem escreve cartas anônimas geralmente tem caráter muito vulgar. Mamãe já havia sabido do ocorrido e ficou surpreendida com a tolice, achando que era uma coisa tão boba que nem se devia dar importância, mas nada lhe disse sobre o caso e nem deu demonstrações de que soubera da mesma em casa da tia da outra cunhada. Uns dois dias depois de nossa estadia, ela mesma contou a minha mãe o caso da carta, minha mãe alegou que ouvira falar, mas que ela não deveria dar importância porque era uma coisa tão sem sentido que ela deveria ignorar. Eu não sei o que ela pensou, queria por força que mamãe contasse quem mandou a carta. Mamãe lhe respondeu que tinha vindo do interior há dias e que só tinha havido comentário sobre o recebimento dela por pessoas da família que sabiam por ela mesma a recebedora da carta, como poderia saber o autor da carta? Ela respondeu:" ou você é minha amiga e conta quem foi, ou é minha inimiga, e retirasse-a imediatamente de minha casa." Como é que minha mãe poderia dizer qualquer coisa se ignorava completamente a procedência dela? Nós estávamos numa posição infeliz, precisando dos outros e sofrendo uma humilhação tremenda, coisa que nunca teria acontecido se não tivesse perdido tudo. Nós éramos mais ricos que eles, com nome acatado e honrado. Duro não? Na ocasião apareceu Sinhá, casada com o irmão do dono da casa e tia de Dona Bembem, em cuja casa estivera quando chegamos do interior. Quando eu ouvi as palavras de ML. sobre a intimação de obrigar minha mãe a contar quem escrevera a carta sob ameaça de expulsão da casa, fiquei tão indignada que expus toda a situação, pois estava a par de tudo. Contei que ouvíramos comentários sobre o recebimento da carta na casa da Dona Bembem, tia de Sinhá na presença de minha tia Yasuta, de meu primo Conrado, seu filho Valentim, minha mãe e eu. Um comentário banal que havia sido contado pela própria receptora da carta, indignada com o fato, nada mais que isso e que ninguém sabia da procedência da dita carta anônima e acrescentei: "vocês podem pensar o que quiserem" e dirigindo a minha mãe eu lhe disse: "Vamos nos retirar desta casa imediatamente, seja para onde for pois a nossa dignidade não permitirá que aqui fiquemos nem mais um dia." Eu não posso compreender como uma explicação tão clara pudesse trazer tanto aborrecimento. Sinhá ouviu as minhas palavras e disse: "Coitada da tia Bembem! Vocês a estão pondo no embrulho". Eu respondi que não estávamos pondo ninguém no embrulho e que apenas estava contando o ocorrido, que para mim era simples e sem complicações, depois disso M.L. parece que ficou meio sem jeito pela sua grosseria e foi procurar alguns pratos e talheres velhos para nos dar, um açucareiro de ágata, pois nós íamos mesmo nos retirar para um pequeno quartinho, sem móveis, em casa de uma pequena família na rua da Glória, aqui em São Paulo.
Nós alugamos a quarto mais barato que encontramos (30,00), sem uma peça de mobília e nem cama tinha. Como o pagamento era adiantado, mamãe só pode comprar um colchão de solteiro que com a mala que continha a nossa pouca roupa e uma cadeira emprestado pela dona da casa constituía todo o mobiliário. Tia Mariquinhas, sogra de Sinhá e M.L. haviam morrido de câncer e tia Emília já velha em situação financeira precária, havia sido recolhida em casa de outra irmã em Vila Mariana, antiga Rua Senador Fontes Junior, transformada em Joaquim Távora, após a revolução de 1930. No referido quarto, minha mãe costumava enrolar o colchão durante o dia e só arrumava para dormirmos a noite. Uma tarde fomos fazer uma visita em casa de antigos amigos que nos tinham convidado para jantar, o que era um acontecimento para nós, pela garantia de uma boa refeição, coisa que só conseguíamos umas duas ou três vezes por semana, ora na casa de tia Zé, ora na casa de Dona Zulmira ou de Dona Maria. Naturalmente deixávamos de contar isso e que íamos a sua casa a pé para fazer economia ou por falta de dinheiro para o bonde. Creio que tínhamos vergonha de contar, com medo de sofrer novas humilhações. Muitas vezes, passamos dia em casa de Dona Maria, a pedido dela, para costurar alguma roupa, recebendo em troca o almoço e jantar, eu penso que ela achava suficiente porque éramos duas, Mamãe e eu. Uma noite ao voltarmos para o nosso quarto, debaixo de chuva, vimos com surpresa que o nosso colchão estava molhado, pois havia uma goteira justamente no local onde o havíamos deixado. Qualquer um que tem um pouco de coração poderá compreender a nossa situação. Procuramos cobri-lo com alguns jornais e o que pudemos encontrar para tornar o local apresentável para dormir.
Mudamo-nos depois para a mesma rua esquina da Rua Barão de Iguape, para casa de umas costureiras, filhas de italianos e continuamos na mesma situação, só que elas eram boazinhas e cortaram um vestido para mim e reformaram um casaco resto de um mateaux que mamãe trouxe da Europa, em preço módico. Que diferença, não? Aos domingos elas faziam macarronada e nos convidavam para compartilhar. Creio que elas percebiam a nossa dificuldade, pois continuávamos dormindo no tal colchão, sem cama e sem mais nada. Como o quarto fosse um pouco caro para nós, mudamos para outra casa, de uma senhora de nome francês que tinha três filhas. Esta casa era na Rua Barão de Iguape também e o quarto era mais barato porque dava para uma pequena área interna. Foi nessa casa que tio Martim e tia Zé nos foram visitar e descobriram que dormíamos no chão; saíram e compraram uma cama e um colchão e nos mandaram um armário que até hoje temos de lembrança. Depois disso, mudamos para um quarto na Rua Galvão Bueno em uma casa mais apresentável, quase nova, em casa de uma família alemã, também muito boa. Nesse quarto havia uma boa cama, uma mesinha e uma prateleira rodeada por uma cortina, servindo de armário. Com a cama e o armário dados por tio Martim e tia Zé, melhorou bem a aparência do quarto e tínhamos mais comodidade.
Foi aí então que tia Zé, que estava hospedada na casa do Bento de Carvalho, na Rua da Consolação, sugeriu que fossemos visitar minha irmã Antonietta que já estava ausente a três anos e que tínhamos visto apenas umas 4 vezes em todo o tempo. Lá ficamos a convite da família uns dois meses ou pouco mais. Naquela época eu ainda era muito nova e fui pedida em casamento por um rapaz muito simpático, alguns anos mais velho, filho de um fazendeiro, de ótima família. Na ocasião eu ainda estava em dúvida sobre os meus sentimentos para com ele e pedi um prazo para refletir. Na ocasião em que eu fui, a pedido dele juntamente com a Catha, fomos a casa de um irmão dele casado e com dois filhos pequenos, para decidirmos sobre o noivado. Houve um desentendimento entre nós e Catha e eu voltamos para a casa dela, onde estávamos hospedadas. Quando ali chegamos encontramos a minha mãe e o Dr. Gerdes, pai adotivo de Catha, se desentendendo porque ela queria levar a minha irmã para São Paulo e ele não queria por achar que não estávamos com condições. Com a chegada da Catha que voltara comigo o problema se agravou porque ela também não queria que minha irmã saísse da casa deles. A insistência foi tão grande que minha mãe resolveu comprar passagem no dia seguinte pela manhã cedo e voltarmos para São Paulo, apesar de eles ficarem contrariados com a sua atitude.
Mais tarde eu me arrependi de ter recusado o meu ótimo pretendente e escrevi uma carta para seu pequeno sobrinho a quem havia prometido dar notícias, contando a nossa residência, ignorada por eles. devido a minha grande timidez nada falou especialmente para ele, pensando que, se ele quisesse, me procuraria assim mesmo, coisa que não ocorreu.
Logo depois conheci um rapaz após cinco anos vim a me casar. Joaquim da Costa Cardoso com quem fui muito feliz. O antigo pretendente citado conheceu bem depois, uma boa moça e veio a se casar também.
Quando voltamos de Matão mamãe aplicou o dinheiro na compra de um sobradinho em Vila Mariana, na Rua Machado de Assis em declive e sem calçamento naquela época, mas era uma boa casa com jardinzinho na frente, sala de visitas, de jantar com escada dando acesso para a parte de cima, onde havia um hall, 2 quartos e terraço nos fundos. Em baixo, além das duas salas havia a cozinha, pequeno corredor e banheiro. Era isolada de um lado e tinha mais de 40 Metros de fundo. A casa fora comprada por 19.000,00, mas demos 13.000,00 fora 6.000,00 da hipoteca para podermos ter o que comer. Perto de casa, na Rua Vergueiro, morava uma senhora muito amiga e comadre de uma das minhas tias avós tia Candinha, casada com o Sr. João Baptista de Campos Leite que tinha cartório em Itatiba e que por sua vez era aparentado com o Dr. Eduardo Maia, Luiz Maia, os Libero (Nelson, José e Cásper). A referida senhora tinha três filhas casadas, Dona Yayá, casada com um advogado do interior; Dona Zizi, casada com o professor Colombo de Almeida e Dona Helena, afilhada da referida tia, casada com Dr. Marrey Jr. A mãe delas foi extremamente boa para conosco, arranjava sempre em jeito de nos mandar uma cesta com feijão, arroz, batatas etc., sob a alegação de tratar-se de uma compra de ocasião e que ela tomava a liberdade de nos oferecer. Infelizmente ela morreu pouco tempo depois, o que nos causou muita tristeza, eu então chorava desesperadamente sentindo a sua falta.
Logo depois fomos obrigadas a vender a casa de que tanto gostávamos, por falta de recurso, para comprar outra de renda mais fácil no Belém. Era uma casa térrea dando para a rua, com um portão ao lado com acesso a um barracão que poderia ser alugado separadamente, dando maior renda. Infelizmente ocorreu a revolução de 1924 e o bairro do Belém foi atingido pelo tiroteio e a casa foi bombardeada, de tal forma, que o que sobrou, como portas e janelas foram roubadas, quase nada restou. O governo deu uma indenização de apenas 1.000,00 e o dinheiro obtido com a venda do que sobrou não dava para viver. Foi aí que eu decidi trabalhar, mas sem dispor de uma carta para conseguir emprego que correspondesse a nossa posição social, um tanto decadente, como viram. Manifestei à Dona Zulmira amiga de longos anos da minha mãe, cujo marido Dr. Mario Tavares iria desempenhar o cargo de Secretário da Fazenda e ela me aconselhou a estudar datilografia para conseguir uma pequena colocação de 4a escriturária na referida secretaria, o que consegui em abril de 1925, com perto de 400,00, com o objetivo de ajudar a nos mantermos, porque naquela ocasião, de pouco dinheiro dispúnhamos, mal dava para as menores necessidades. Pagamos por um quarto com três camas e o armário e toalete (penteadeira), mesa e cadeiras de que dispúnhamos, 120,00 mensais, 180,00 de marmita, num total de 300,00, dinheiro para a compra de café, leite, pão, manteiga, compra de calçado, roupa, condução etc., mal dava, mas já era alguma coisa.
Na época em que houve a Revolução de 1924, nós estávamos morando no referido quarto e foi mais ou menos naquela ocasião que meu marido Joaquim e eu nos conhecemos. Ele morava em uma pensão próxima, pois, a família morava em Sorocaba, São Paulo foi então que começou o namoro. Quando percebi que era séria a nossa afeição e que dentro de algum tempo estaríamos noivos, fiquei muito preocupada não só porque não sabia como poderia recebê-lo, como noivo, pois não dispúnhamos de uma sala além do quarto. Logo, porém, os donos da casa, que se dispôs a mudar para Rua Francisca Miquelina, casa maior onde poderíamos alugar dois cômodos, sendo um de frente, com janelas para a rua e outro de lado com comunicação interna, os quais utilizamos, um como sala e outro como quarto para nós três. Foi aí que meu marido e eu ficamos noivos, pois dispúnhamos de uma salinha modesta, mas, bem arrumadinha com um terno de palhinha para qual minha irmã que era muito habilidosa, fez almofadas para os acentos e encostos de fazenda colorida que lhe dava boa aparência. Tínhamos também uma mesa oval e 4 cadeiras, além de um pequeno armário para louças. Quando ficamos noivos, meu marido havia sido aumentado e logo depois eu também tive uma promoção, passando de 4a escriturária para 3a isto em julho de 1927, pouco antes da dissolução do Secretariado da Fazenda com a morte do Presidente do Estado, Dr. Carlos de Campos. Antes disso, a família do Dr. Mário Tavares, mostrou interesse me indicando como candidata a vaga para promoções, pois sendo cargos modestos, criados pela reforma de abril de 1925, ocasião em que eu fora nomeada, as possibilidades eram grandes, pois já tinha conseguido me impor no serviço e contava com apoio do Secretário da Fazenda. Mas, aconteceu que o presidente do Estado tinha outra candidata e eu perdi a esperada promoção. Naturalmente fiquei decepcionada e chorei, pois além de precisar muito de dinheiro para fazer face às despesas com a nossa manutenção, contava poder começar a fazer algumas peças de enxoval.
Mamãe, a quem eu pedira para não tocar no assunto com a família que se interessara por mim e não conseguira seu objetivo, pelo motivo apontado anteriormente, não se conteve e reclamou à grande amiga, contando que eu havia chorado muito e que sendo ela tão amiga e sabendo das nossas dificuldades deveria pensar primeiramente em nós, ao que ela respondeu explicando que não fora por desinteresse do marido, mas pelo aparecimento de uma candidata mais forte e que eu teria outra oportunidade. Mamãe não podia compreender de jeito nenhum e continuou insistindo que eu trabalhava muito e que estava magra de tanto me esforçar e que eu não deveria me sacrificar tanto, assim por diante, e que Mário deveria se interessar por mim etc. Alguém ouviu, contou para uma das filhas. Mamãe estava desesperada com a nossa situação e achava natural que eles se interessassem primeiro por nós, mas como acontece, a pessoa que nunca passaram por tantas dificuldades não tem compreensão faltando-lhes psicologia, revoltando-se contra atitudes que demonstrem revoltas, chegando a humilhar os amigos de longos anos. Acharam que eu estava magra devido ao namoro, que isto passaria e que se eu não estava contente com o emprego poderia deixá-lo. Quando eu vi o rumo que as coisas estavam tomando, pedia mamãe para não dizer mais nada e comecei a chorar como uma desesperada, prevendo o final de uma grande amizade.
Coisa curiosa, muitas pessoas chegam a se comover com romance ou fita triste, mas raramente querem ouvir os desabafos dos que sofrem, ficam caceteadas em vez de procurarem animar animá-los. As vezes uma palavra de conforto anima tanto e dá coragem para o outro reagir, mas raramente acontece isso. Ninguém quer saber de amolação, porque ouvir as queixas dos outros não lhes interessa. A atitude do irmão rico perante as queixas do pobre que os visita, parte humorística da televisão, retrata bem isto. Uma vez assisti a um filme interessante sobre a reação nervosa das pessoas: umas tem tendência inata para a loucura, outras podem, ou não enlouquecer, dependendo dos sofrimentos porque passam e outras não enlouquecem de jeito nenhum por mais que sofra, tal a fibra de que são dotados, sempre reagem.
Depois dos acontecimentos que citei acima, dona Zulmira passava de carro pela rua quando viu mamãe e fez o chofer parar para recebê-la e levou-a a sua casa onde a tratou muito bem. Logo depois eu fui visitar Lúcia, filha mais moça, ainda solteira, de quem era muito amiga desde pequena e achei-a tão indiferente, nem sequer insistiu para que eu voltasse novamente, eu, envergonhada, não voltei mais, pensando em importuná-la. O mais interessante foi que uma de suas priminhas, mais moça do que eu, muito bonita por sinal, cujo nome era Marília, não me abandonou nenhum instante, ficou ao meu lado chorando muito comigo em sinal de solidariedade o que muito me sensibilizou, o que nunca esqueci. Ela se casou com um rapaz do Rio de Janeiro e depois se mudou para lá, de modo que pouca oportunidade teve de vê-la. Agora, depois de enviuvar mudou-se para São Paulo e já me convidou com insistência para visitá-la, o que pretendo fazer qualquer dia, se Deus quiser.
Quando nós morávamos em quarto alugado, quase ninguém nos visitava, não procuravam saber se precisávamos de alguma coisa, nem mesmo por ocasião de aniversários. É verdade que nada dizíamos sobre a nossa situação. Isto, nos entristecia bastante. Não sei por que, pois sempre moramos em casas modestas, mas de gente decente e na maioria das vezes éramos as únicas inquilinas. O que eu não podia entender era que antes amigas nossas nos procuravam por telefone da casa de uma senhora amiga que morava na mesma rua, mas uma boa distância de onde morávamos convidando para irmos jantar em sua casa, mas não nos procuravam na nossa residência.
Quando íamos passar temporada na Chácara Boa Vista, na nossa casa da Praia de Itararé, em São Vicente, eu costumava frequentar, ainda menina, as sorveterias do Miramar, aos domingos, onde gostava de dançar. Era um local bem frequentado. A orquestra, Jazz Band daquela época, era muito animada. Começavam com a Marcha dos Soldados, finalizando com a mesma música. No Clube XV, os bailes eram iniciados e concluídos com a valsa do Clube XV, linda música tocada de vez em quando, na "Hora da Saudade" pela rádio. Frequentei algumas domingueiras do Jóquei Clube em Santos, por gentileza do Sr. Pérsio Martins que nos ofereceu espontaneamente um convite permanente que possibilitava a nossa ida àquele local quando quiséssemos. Naquela ocasião nós já não tínhamos mais recursos financeiros para frequentar festas, motivo por que fiquei muito agradecida ao Sr. Martins pela década atenção.
Com o término da concordata, que durou 2 anos, tivemos que deixar a nossa casa da praia e aí acabou toda a possibilidade de nos divertirmos. Com isso meu pai nunca recuperou a saúde, o que me causava tristeza. Ficamos definitivamente em São Paulo, aonde íamos vez por outra, a festinhas em casa de amigos, mas com menos frequência, por falta de trajo adequado etc. Apesar de eu já nessa altura costurar a nossa própria roupa e fazer nossos chapéus, indispensáveis naquela época. Faltava também companhia de minha idade para frequentar as festas, pois minha irmã era mais nova que eu 7 anos, não estava ainda em idade de frequentar festas a noite, e mamãe sendo moça ainda não podia nos acompanhar sozinha tarde da noite, o que dificultava o nosso comparecimento às reuniões dançantes.
A nossa situação, durante certo tempo tornou-se tão precária, que tínhamos que andar a pé longas distâncias para visitar amigos por falta de 200 reis para o bonde. Da rua Genebra, onde moramos durante algum tempo íamos a pé até a rua Marquês de Paranaguá, à casa de amigos, pelos antigos piques que não era lá muito bem frequentado, mas não havia outro caminho mais próximo e não tínhamos recurso senão ir por ali mesmo. Num dia em que saímos da referida casa, estava ameaçando chuva, mas esta custou um pouco para desabar e nós pensamos, minha mãe, minha irmã e eu que daria para chegar em casa antes, mas a danada nos pegou no caminho e nos molhou bastante. Em outro dia, eu que não tinha muito jeito para dissimular, contei à Zilah, sobre a chuva que tomamos e ela ficou admirada pois não ocasião em que saímos de sua casa daria para chegar em nossa casa antes da chuva, isto naturalmente, se fossemos de bonde pelo Avenida" que passava pela rua da Consolação, Av. Paulista e Av. Brigadeiro Luís Antônio que ficava próxima a sua casa. Ela desconfiou e me perguntou se eu tinha dinheiro e pediu licença para examinar a minha bolsa. Certificando-se que a sua desconfiança tinha fundamento passou a colocar na mesma 5 ou 10 cada vez que íamos visitá-los o que ocorria uma vez por semana Lúcia a outra irmã me pedia para acertar um vestido ou outro para arranjar pretexto para me pagar alguma coisa, porque eu fazia as coisas para os outros, mas tinha vergonha de cobrar, por falta de hábito, talvez.
Quando alguém tinha certa posição, naquela época, procurava se defender como podia, pois, nem todos davam valor aos seus trabalhos. Só quem passou por isso pode Saber com segurança o que ocorre nessas circunstâncias. Entre a luta pela sobrevivência pelo trabalho e pela luta para manutenção de sua posição social já prejudicada pela falta de bens materiais tão considerados em todos os tempos, de grande valor. Somente quem passou por essa infelicidade pode avaliar por experiência própria o valor que a maioria até os parentes, dão a isso. Quando se tem necessidade de morar em um quarto alugado, embora em casa de boa família ninguém procura, não sei por orgulho ou para ignorar a situação precária para não ajudar, quando uma presença amiga poderia significar tanto. Algumas pessoas nos convidavam para visitá-las e até para jantar, mas não nos visitavam, o que nos torna tristes e deprimidos. Essas pessoas nos fazem sentir a nossa posição modesta em relação a delas, mas nos recusamos a concordar com elas porque do contrário jamais conseguiríamos recuperar nossa posição por direito de nascimento e educação. Só lutando contra adversidade com todas as forças que dispomos deixamos de cair.
Mamãe, não podia arrumar uma ocupação permanente por causa da questão; ela tinha que ir constantemente à Santos de trem o que o fazia de 2a classe por falta de dinheiro. Passava o dia todo com apenas um copo de leite. Havia despesas com embargos, apelações, audiências e outras coisas que requeriam buscas etc.
Só quem viu como eu e minha irmã é que podemos testemunhar. Ela lutou valentemente; chegou a receber cartas anônimas ameaçadoras, intimando-a a desistir da questão sob pena de agressão física. Ela deu parte ao Dr. Alfredo de Assis, delegado da polícia de São Paulo e amigo da família, que pôs a nossa disposição um guarda civil para fiscalizar nossa residência. As provações foram muitas e nem tínhamos ideia do que ainda nos esperava e da grande desgraça que nos atingiria. Mamãe e eu começamos a emagrecer muito, cheguei a emagrecer 13 quilos e tinha muita fome, talvez por ser tão mocinha. Fiquei desfigurada, perdi quase toda a beleza que todos diziam possuir. Graças a Deus minha irmãzinha não estava conosco pois mamãe a tinha mandado para Matão em casa de parentes. No entanto parece que ela também não foi feliz embora não passasse fome. Sentíamos muitas saudades dela e pouco podíamos visitá-la por falta de dinheiro para comprar as passagens, como mencionei anteriormente.
Um dia, em plena rua um rapaz conversando com outro falaram: "olha que fauce maigre engraçadinha", fiquei mais consolada. Fui contar para a madrasta da minha mãe que logo veio com indelicadezas falando que eu era magricela, ela sim, era fauce maigre. Como existem pessoas maldosas! Outras vezes minha mãe se recordava de nossa viagem à Europa e eu ouvia Julia, meio aparentada conosco, foi criada por um tio, dizer que isto tinha sido a muito tempo e que a Europa tinha mudado muito. Nós sabíamos que isto realmente havia ocorrido após a 1a guerra mundial quando bombardearam Berlim, Londres e várias outras cidades. Gostávamos apenas de nos recordar de momentos felizes. As pessoas são muito egoístas! Certas pessoas querem deixar claro que não somos mais nada, que nós devemos nos recolher a nossa insignificância. Diziam, são saudosistas, passadistas etc. Uma pessoa jovem que teve um, a vida regular não tem muito que se recordar porque foram dias de luta e nem sempre felizes.
Uma noite, quando estava próxima dos 40 anos, comentava com minha irmã sobre os elogios que eu recebera quando mocinha e lhe dizia que eu tinha mudado muito nestes 20 anos, mais conformada com tantas mudanças. No dia seguinte, ao sairmos da Igreja de Santa Cecília onde tínhamos ido a Missa, encontramos nossa prima Mariquita com seu marido, em certo momento distanciamo-nos do restante do grupo, meu marido, mãe, irmã, e não ela me conta que havia estado no Rio de Janeiro e nosso primo Paulo de Magalhães lhe disse que eu era a menina mais bonita que ele havia visto. Após este relato ela fez um comentário maldoso: " Cá entre nós, você não parece ter sido estas coisas. Fiquei sentida, mas não lhe respondi nada e notei que ela ficou decepcionada com tal atitude esperava uma resposta agressiva, o que não ocorreu porque não era do meu feitio.
Ontem foi dia 31 de dezembro de 1971, seria o aniversário da minha sobrinha Ilka, que sofreu um acidenta na Rodovia Washington Luiz onde pereceram seu marido Sebastião, duas filhinhas: Cláudia e Sandra com oito e 10 anos, restando apenas uma Mônica com 11 anos que teve fratura na parte de superior do crânio, "calota", hemorragia no ouvido direito e fratura no braço direito na altura do úmero. Foi um caminhão desgovernado que os matou próximo a Rio Claro. Foi uma tragédia que feriu toda família constituída mais 4 irmãs 3 casadas e uma mais nova, solteira. Eu fiquei quase doida sem poder acreditar que um golpe tão terrível nos atingisse.
Família da Tia Antonietta na segunda foto. Na primeira temos Aristeu e suas filhas e minha mãe Marilia (a primeira da esquerda para direita)
*
PARTE 2
MARÍLIA CARDOSO DE PAULA DE ASSIS
Bem, vocês puderam ler os relatos de minha mãe, e agora tentarei contar-lhes as experiências desta pequena burguesa nascida no século XX, Marília, filha de Irene Reipert Cardoso cuja filiação já foi registrada acima, e de Joaquim da Costa Cardoso, nascido em Sorocaba, São Paulo, em 25 de Junho de 1903, filho de Antônio Miguel Cardoso e Maria Antonia da Costa Cardoso cujos avós paternos Joaquim Cardoso Miguel e Maria de Jesus, residentes em Portugal e Manoel João da Costa e Gertrudes da Conceição da Costa. Meu pai teve 13 irmãos, três morreram pequenos e restaram 09 homens e apenas uma mulher, Zilda. Como era nossa vida nesta época? Sei que meus pais se casaram em 1930 e que devido as dificuldades econômicas, a irmã Antonieta e avó materna Yayá (Aurinívea) moravam juntas com o novo casal.
Meu pai trabalhava na Loja do Japão no centro de São Paulo e minha mãe que começou a trabalhar com 18 anos, na Secretaria da Fazenda na Rua 15 de Novembro, na época, no centro de São Paulo. Minha tia muito ajudava na casa e através de costuras, sei que fazia lindos bordados e inclusive fez meu vestido de 15 anos, com renda Racine enfeitando o corpo e a saia, minha avó volta e meio ia para Santos, pois tentava recuperar o terreno perdido na praia de Itararé em São Vicente em frente a Ilha Porchat. Um quarteirão inteiro que foi roubado de meu avô que estava doente. Vocês podem imaginar uma mulher na época, desquitada e ainda lutando em fóruns para reaver uma propriedade? Ia para Santos de trem, de Segunda Classe passava o dia quase sem nada para comer retornando a noite para casa. Sei que sempre ouvi falar na "Questão de Santos".
Nasci só em maio de 1938, meu pai não queria filhos, pois os dois trabalhavam o dia todo e ele se preocupava com a criação de uma criança sem atrapalhar as pessoas que com eles moravam chegou a ponto de minha mãe achar que um dos dois era estéril. Como vocês podem ver as coisas eram bem diferentes. Ela quis ir ao médico para fazer exames e soube que nada havia com ela que impedisse que tivesse um filho. Falou com meu pai que o médico lhe aconselhara que fosse ao consultório para verificar os possíveis problemas. Ele, porém, a tranquilizou dizendo que lhe que ficasse tranquila, e que após 9 meses eles teriam um filho. Nasci então, muito aguardada e querida, mas infelizmente não tive irmãos, pois as preocupações de meu pai continuaram e achava que não deveria explorar minha avó. Nesta altura minha tia, Antonieta já havia casado com um amigo de meu pai Aristeu Zelante de Godoy, descendente de italianos, família de Campinas e Amparo. Meus tios já tinham duas filhas na época em que nasci: Lucy e Maria Helena. Talvez dê para entender a ansiedade de minha mãe tendo casado antes e sem filho. Mais tarde meus tios tiveram mais três filhas sendo a última bem mais nova que as demais, quando ela nasceu eu já tinha 15 anos. Quais os nomes? Ilka, Nancy e Maria de Fátima.
Minha vida toda girou em torno destas primas, eram minhas companheiras, como irmãs para mim, amigas que somos até hoje. Uma fatalidade, porém, nos afastou de Ilka que devido a um acidente na altura da cidade de Rio Claro, São Paulo faleceu aos 29 anos, em 1971, juntamente com o marido Sebastião Braz de Oliveira, médico veterinário, chefe da casa da Lavoura de Campinas na época e suas duas filhinhas Sandra e Cláudia como já foi relatado acima. Somente Mônica se salvou e hoje em dia mora na cidade de Marília onde meus tios moravam e onde passei parte da minha juventude, todas as férias eu queria estar com minhas primas e tios que eram meus padrinhos e meus segundos pais.
Que lindas, que flores, que cultura acumulamos através de muita leitura em época em que a TV não existia pelo menos em nosso país (1950?).
Não podemos esquecer as diferenças existentes na vida da pequerrucha Maria de Fátima que tanto nos alegrou, tão linda! Atualmente essa linda moça é mãe de duas lindas mocinhas, Psicóloga, Doutora pela USP e professora da UNESP de Marília. Estive presente na sua defesa de Tese "Educação Artística para Deficientes Auditivos", cada vez, fiquei mais admirada pela clareza de sua exposição e as suas respostas quando inquirida pela Banca presente.
Eu ficava em São Paulo com meus pais e minha avó Yayá enquanto minhas primas ficavam em uma fazenda, Capão Bonito próxima a Bueno de Andrade, próxima a Araraquara para onde foram mais tarde.
Meus pais trabalharam muito, prestaram concurso para a Secretaria da Fazenda em São Paulo Minha mãe, escrituraria, com dezoito anos começou a aprender muito. Prestou concurso e com o tempo muito nos contou sobre a contabilidade feita inclusive para o Governo de Getúlio Vargas, previsões orçamentárias trabalhosas, através de análises dos anos anteriores à minha avó minha mãe aconselhou que comprasse uma casa na Alameda Gabriel Monteiro da Silva, rua atrás de nossa casa. Mamãe disse-lhe que ela poderia alugá-la para ter uma renda própria. Continuaria morando conosco. Vovó, porém, não ouviu o conselho. Achou melhor colocá-lo no banco, sendo escolhido o "Lar Brasileiro" e "Banco do Brasil" no centro da cidade de São Paulo. Aos poucos, o valor se foi e ela perdeu quase tudo embora colocasse a maior parte na poupança.
Casa em Marilia de Antonietta e Aristeu – dinheiro da Questão de Santos
Quando me formei na faculdade e já trabalhando como professora (1962) ia à cidade buscar o seu dinheiro, sua renda. Pagava 10,00 de táxi para ir ao centro da cidade e 10,00 para voltar para a Rebouças, ela estava mais fraca. Sabem quanto ela recebia? 6,00. Realmente eu teria que lembrar da nomenclatura monetária desta época. Para ajudá-la eu dava 50,00 por mês deixando-lhe muito feliz. Foi uma pessoa que tentava ajudar a todos, mas as condições foram adversas. Convivi com minha avó desde a infância, a juventude até eu me casar.
Quanto a meus tios Aristeu e Antonieta, compraram uma fazenda em sociedade com mais dois amigos, próxima a Araraquara, Capão Bonito. Nesta fazenda tive ótimas experiências. Era uma linda fazenda com uma casa enorme e um lindo terraço virado para os terreiros de café. Esses terreiros na realidade serviam para secar o café durante o dia e a noite os empregados juntavam em um monte e cobriam com lona para protegê-lo contra a umidade. Esta fazenda não era só de café. As atividades eram variadas: criação de gado principalmente bovino, equino e suíno. O pomar era muito lindo com inúmeras frutas, próximo a casa. Minha avó saia cedo para chupar manga, quando chegava, minha tia aconselhava-a a não comer manga com leite. Ela, porém, adorava e saia quietinha para curtir sua frutinha.
Quais nossas atividades neste belo ambiente? Minhas primas eram muito corajosas ao passo que eu era uma covardona principalmente para subir em árvores. Minha mãe não se conformava, foi uma garota muito traquinas. Fazia travessuras que deixava os primos horrorizados. Em algumas chácaras da sua época chegava a pular de uma árvore para outra com grande facilidade. Muitas outras travessuras nos eram contadas.
Na fazenda de meu tio existia um pé de Cambucá onde um galho estava posicionado na horizontal e em grande altura. Minhas primas se deliciavam fazenda acrobacias. Minha mãe não se conformava com o meu medo. Tentou subir na árvore comigo e me colocou em posição de acrobacia. Não consegui fazer nada, estava morrendo de medo. Chamaram um marceneiro que lá trabalhava para me tirar da árvore. Claro ficou que com o tempo eu me renderia, mas não quiseram arriscar.
Andar de bicicleta nos terreiros de café era fácil. O problema eram andar no areão na passagem para a casa. Tinha uma curva a passar, acontece que escorregava com facilidade,
para chegar ao destino. Em frente a esta curva existiam arbusto e eu como desajeitada acabei pendurada nos galhos das mesmas, o pior é que estava com lindo vestido que minha tia tinha feito. Todos riam e eu também. Que ambiente alegre e saudável!
Com cavalos também não tive sorte, arrumaram uma égua chamada Boneca muito mansa. Não é que ela conheceu alguém muito medrosa e se deitou junto ao chão e para variar fiquei aparvalhada. Maria Helena, minha prima, era muito corajosa. Meu tio tinha um cavalo árabe branco lindíssimo e somente ele podia montá-lo. Sabe o que a garota de 09 anos fez? Subiu no cavalo que empinou adoidado deixando-nos horrorizados. Daí em diante ela conseguiu montá-lo.
Gostava de ver a contagem do gado bovino e a marcação do mesmo em uma passagem engradada com posição mais elevada para o dono da fazenda observar e a retirada do leite ao amanhecer.
A criação de suínos era para a época especializada com cercas eletrificadas e todo cuidado possível. Lembro-me que quando nasciam os porquinhos o último era mais fraco e não conseguiam sobreviver. Uma das minhas primas, Maria Helena, criava estes menores dando mamadeira e a alimentação apropriada. Estes ficavam sempre atrás dela até serem confinados no chiqueiro. Quando tinham filhotes chegávamos até a cerca e chamávamos a Chica que vinha correndo em nossa direção com os filhotinhos. Ficávamos muito contentes e Lena mais ainda.
Outra que aprontei: estávamos correndo pela fazenda e imaginem vocês que entrei na marcenaria e não me dei conta que lá existia um visgo, espécie de cola para pegar pássaros que por sinal não gostávamos nada, passei correndo e saí com aquilo tudo pregado no meu cabelo. Neste instante, minhas primas e eu ouvimos vozes de minha tia e mãe o que fez com Lena e eu fossemos pedir socorro de como tirar tudo aquilo da cabeça. O marceneiro nos disse que o jeito era passar banha. Chegamos à casa e fomos para a banheira quando Lena muito atrapalhada com o produto passou em minha cabeça fazendo com que tudo saísse. Coisa horrível, ver minha priminha fazer aquele sacrifício enojada de pegar aquela banha, éramos ainda pequenas com cerca de 9 anos.
Quanto a minha tia Antonieta, vocês nem podem imaginar o que ela fazia: promovia almoços para os sócios e para a família, comida e doces saborosos com goiaba para servi-los. Nós a víamos fazer linguiças caseiras, massas caseiras. Além de tudo era uma artista, fazia lindos vestidos para as filhas e de quebra para mim também. Para vocês terem ideia fez meu vestido de debutante com renda Racine que era importada da França (como já mencionado). Este mesmo vestido foi usado pela minha filha número três, Mirian aos 15 anos no baile.
Contando-lhes tudo isso, não posso esquecer que minha mãe era artista também tendo a pintura e desenhos, que todos admiravam. Participou de diversas exposições: Salão Paulista de Belas Artes, Associação Paulista de Belas Artes e outras exposições particulares.
Ganhou medalhas de Prata, de Bronze e Menções honrosas. Adorava fazer figuras a óleo e a pastel e pintar flores, paisagens e natureza morta. Houve uma época que ela foi ao MASP fazer uma cópia de garotas de Rosa e Azul de Renoir em tamanho menor. Enquanto o fazia despertava a atenção dos visitantes, pois estava ficando lindo. Isto irritou na época o Sr. Bardi o que a fez acabar o quadro em sua casa auxiliada com fotos para não atrapalhar os circunstantes.
O que mais contar desta bela família? Saibam que tem mais. Durante o Natal eles vinham e ficavam conosco na Rebouças. Sempre queriam, contribuir com algo para ajudar nas refeições. Traziam peru e nós ficávamos penalizados por embebedarem os mesmos para fazê-lo para a ceia. Uma vez trouxeram um porquinho. Estávamos penalizados! Sabem o que ocorreu? Saiu na disparada pela Rebouças sendo atropelado embora o trânsito não fosse tão grande. Acabamos dando para alguém que queria criá-lo.
Mas será que nada tenho a contar da família de meu pai? Tenho sim, com muito carinho e admiração. ĺamos todo fim de semana visitar minha avó Maria e avô Antonio encontrando os outros irmãos e pessoas da família. O aniversário de ambos era em junho (8 E 13), imaginem a festança onde se reuniam os familiares fazendo lindas fogueiras e degustando doces típicos da época: abóbora, batata doce etc. Que alegria! Meus tios e primos Adalberto e Adalto saltavam a fogueira e eu ficava horrorizada, como vocês devem perceber pelos relatos acima, pela grande coragem existente nesta personalidade infantil. Minhas tias eram queridas: professoras, funcionárias e uma excelente pianista e professora emérita que nos fazia admirá-la cada vez mais. Seu nome? Elisa Leal Cardoso residente em São Caetano do Sul, com filhos também todos eram dignos de muita admiração!
Quanta coisa a contar, não? Nesta narração vocês já perceberam que navego muito. Bom, o tempo passa e já estou indo para o Colégio Assunção na Avenida 9 de Julho (1945). A área era enorme. Hoje, parte do terreno foi vendido para um enorme supermercado entre a Pamplona e a Avenida citada. Neste colégio a origem era francesa e tudo de que precisávamos tínhamos que pedir nesta língua.
Aí existia o seminternato e o internato, eu pertencia à primeira categoria. Para mim era uma maravilha conviver com alunas da minha idade, ter aulas do currículo, durante a manhã, nadar a tarde com aulas evidentemente, gostar das aulas de piano e frequentar as horas de estudo de músicas e exercícios ou frequentar o coral se o desejasse. Esportes? Lógico para quem tivesse gosto para vôlei, basquete e outros mais.
Uma vez, uma equipe do Assunção da qual fazia parte, fomos ao colégio do Rio de Janeiro em Santa Tereza jogar contra uma equipe do Fluminense. Levamos uma "tunda" danada. Divertimo-nos bastante indo com grupo comer pizza e como os moradores de lá são muito simpáticas e boas prosas tanto mulheres como homens, adoramos!
Outras coisas a contar; o almoço do colégio. Muitas gostavam e outras detestavam. Existiam colegas que comiam a me ver comer com tanto gosto. Adorávamos um triangulo de massa que cobriam com um doce de goiaba. Que delícia! O que mais contar? Domingo éramos obrigadas a ir à missa e após esta havia chamada oral sobre o evangelho. Fazíamos retiro religioso onde líamos muita vida de Santos e passavam filmes feitos sobre eles. Um que me chamou atenção foi à vida de Dom Bosco.
Aulas de artes Manuais, onde aprendemos a costurar, a bordar e durante estas atividades liam bons livros de aventura. Acho que hoje em dia estas atividades fazem faltas às alunas, pois a vida exige que elas se incumbam destas atividades junto às famílias; filhos, marido etc.
Era transportada ao colégio por um ônibus escolar que passava em minha casa as 7:00 horas e retornava da mesma forma as 18:00 horas. Eram muitas alunas a serem transportadas daí a demora do retorno a casa.
Esta vida levou 12 anos. Isto não quer dizer que sempre andei de ônibus escolar. No atual Magistério (antigo Normal), ia ao colégio e retornava dele de transporte coletivo ou muitas vezes gostava de voltar a pé pela Rua Lorena, Rua Augusta, olhando lojas e as pessoas andando e conversando.
Quanta coisa, não? Devem perceber que não tínhamos tanta diversão como vocês atualmente, TV, jogos em computadores etc. Cinema? Que loucura, íamos a todos os festivais passados nos cinemas de São Paulo, frequentávamos aos concertos existentes no Teatro Municipal, e frequentávamos os teatros com peças adequadas a nossa idade. Líamos muitos livros não só como dever escolar, mas para entretenimento agradável. Álbuns com fotos de artistas de cinema também eram feitos. Eu, especialmente sabia tudo sobre eles.
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ÁLBUM FOTOGRÁFICO
Minha bisavó ao centro. Ao seu lado direito olhando a foto tem minha avó Irene e em pé ao lado esquerdo a minha madrinha Antonietta